Natal em Veneza
Lá fora chovia. As gotas de água batiam nas vidraças da casa antiga onde se encontravam. Ouvia-se o som de passos rápidos pelas escadarias das pontes que atravessavam os canais. Nas ruelas de pedra acastanhada, corriam apressadas as pessoas para a ceia daquela noite fria.
Sentados, cobertos com mantas, estendiam as mãos, encostando-as aos aquecedores que tornavam a sala aconchegante. Na ânsia do reencontro de amigos que era a família que tinham escolhido, os dois sentiam o espírito de Natal e esperavam a sua chegada. A mesa estava posta com uma toalha vermelha e copos dourados. Tinha um ar de requinte que só se fazia notar em dias especiais. E aquele dia era muito singular, pois não estariam sós.
Ela dirigiu-se à janela e espreitou por entre as cortinas transparentes. Perto, quase em frente, conseguia avistar a mansão de Casanova, cuja beleza lendária sobrevivia ao passar dos tempos e ainda andava de boca em boca. As gôndolas estavam paradas junto às portas das casas por onde outrora entravam e saiam os habitantes de Veneza. A zona histórica, habitualmente cheia de gente, parecia recatada e só aos residentes pertencia. Não se importavam. Já estavam um pouco saturados da azáfama e correria das férias turísticas que levavam ao local milhares de estrangeiros para admirar as belezas daquela que, durante séculos, foi considerada a mais bela cidade da europa.
A hora da chegada do Vaporetto aproximava-se e com ele viriam os que se sentariam naquelas cadeiras vagas e impacientes. Ela fechou a cortina, sentou-se no sofá em frente à televisão e estendeu a mão ao companheiro de uma vida que envelhecido mantinha o brilho no olhar. Ambos os cabelos brancos se tocaram numa simbiose musical, cadenciada, como um afinado duo, e esperaram tranquilamente.
A campainha tocou, a porta abriu-se e as crianças entraram aos saltos numa alegria pura de quem ainda só viu um mundo inocente e pacífico. Começaram as conversas, as histórias atropeladas, as palavras interrompidas por gargalhadas. A Praça de São Marcos ficara alagada com a subida da maré e as galochas de borracha perderam-se a caminho de casa. Se não tivessem trazido outro calçado, teriam vindo descalços a chapinhar na água da chuva que se acumulava nas ruas. Riam-se, caricaturando aquele dia invernoso.
Foram buscar as travessas à cozinha que ficava ao lado da sala e pousaram-nas na toalha vermelha, junto aos copos dourados. A refeição quente vinha mesmo a calhar para aquecer o corpo e a alma. Sentaram-se nas cadeiras que os esperavam ansiosamente, trocando olhares de entusiasmo e gratidão.
No presépio, o menino estava à espera da meia-noite para nascer. A árvore do costume mantinha-se firme, no sítio habitual, enfeitada e colorida como os seus corações.
Lá fora chovia. Mas, ali dentro, reunidos no calor da amizade, o sol brilhava em cada sorriso.